“Tornarmo-nos cépticos, desistir da ideia de verdade. É isso que o autoritário quer”

Para o filósofo Lee McIntyre, na era da pós-verdade, a desinformação serve para destruir o conceito de verdade. Os que não votam, não vêem notícias e “não acreditam em nada” são um perigo, considera.

Foto
Getty Images
Ouça este artigo
00:00
13:04

Lee McIntyre é investigador no Centro para a Filosofia e História da Ciência na Universidade de Boston. Estudou, nos últimos anos, o fenómeno da desinformação e negacionismo de ciência. Escreveu livros como On Disinformation: How to Fight for Truth and Protect Democracy e Como Falar com Um Negacionista. Afirma que a humanidade vive, actualmente, na era da pós-verdade, uma era onde a desinformação se difunde quase sem controlo e em que o conceito de “verdade” e “facto” estão em erosão. O risco? A erosão, em paralelo, das sociedades democráticas.

Como define a era da pós-verdade? O que é a pós-verdade?
A pós-verdade é a subordinação política da realidade. Quando um político — ou alguém com interesse político — tem um objectivo com o qual a realidade está a interferir. Por isso, violentam os factos e a verdade, porque serve os seus interesses. E isso faz-nos pensar: Como é que eles esperam que alguém acredite nisto?” E a resposta é: o tipo de afirmações que fazem não se destina apenas a convencer-nos de que uma falsidade é verdadeira. É uma afirmação de poder. É a capacidade de dizer: “Agora vives na realidade que eu defini para ti.”

Há [vários] objectivos na pós-verdade: um é fazer com que acreditemos numa falsidade. Outro é fazer com que desconfiemos de qualquer pessoa que não acredite na mesma falsidade, e até que a odiemos. O terceiro é tornarmo-nos cépticos, desistir da ideia de verdade. É isso mesmo que o autoritário quer.

Os mesmos autoritários, por vezes, dizem aos eleitores para não confiar “no sistema” e no que “o sistema diz”. Mas eles próprios dizem às pessoas que não devem acreditar numa verdade e sim noutra nova. Não parece um paradoxo?
O que eles descobriram é que o que precisam de fazer para chegar ao poder e o segurar não é simplesmente substituir a verdade por uma de que gostem, mas sim enfraquecer o próprio conceito de verdade. E fazem-no, porque lhes permite fugir à culpabilização e responsabilidade. É uma táctica de desinformação que usam Vladimir Putin e Trump.

Trump, quando chegou ao poder, afirmou que a sua tomada de posse foi maior do que a do Obama. Qualquer pessoa com olhos podia dizer que isto não era verdade. Porque é que ele se humilharia ao dizer isto? [Porque] o que ele realmente precisava era que eles [os apoiantes] lhe permitissem afirmar isso, mesmo sabendo que era falso, e aceitar. Porque era esse o mundo em que viviam agora, em que a realidade não se definia pela realidade, mas sim por um tirano. É uma técnica terrível e funciona.

Então, não só substituem uma verdade por outra, como destroem o conceito de verdade em si? Para as pessoas terem de escolher aquilo em que acreditam?
Sim. Porque, aí, como se escolhe o que é verdade? Escolhe-se por aquilo que se quer que seja. Pela pessoa em quem se confia ou pela pessoa que está do nosso lado, porque odeia quem nós já odiamos. Hannah Arendt disse, certa altura, a falar sobre uma sociedade totalitária, que o que acontece se estiveres constantemente a mentir a pessoas, não é que elas acreditem na falsidade. É que elas desistem da verdade como um todo. E, com um povo assim, pode-se fazer aquilo que se quiser fazer. É essa a parte assustadora da afirmação.

“Se toda a gente mente sempre, a consequência não é que acredites na mentira, mas que nunca mais ninguém acredite em nada.(...) E uma pessoa que já não acredita em nada não consegue tomar decisões. Fica privada não só da capacidade de agir, mas também da capacidade de pensar e julgar. E com essas pessoas podes fazer aquilo que quiseres. – Hannah Arendt

Nem tudo o que estes políticos dizem, que é desinformação, é propriamente mentira. Quase tudo tem uma pequena base de verdade sobre a qual se constrói uma falsidade. Certo?
Já foi explicado por quem estuda isto que a propaganda mais eficaz é aquela que inclui um grão de verdade. Porque o que querem é que as pessoas digam: “Acho que ouvi que houve algumas lesões por causa das vacinas.” [E os agentes de desinformação respondem:] “Sabes, não houve só algumas lesões por causa das vacinas, algumas pessoas estão a morrer por causa delas. Na verdade, milhões de pessoas estão a morrer por causa disso.” Às vezes uma mentira descarada sem base de verdade pode ser eficaz. Mas é mais difícil de vender. Para quê ter tanto trabalho?

Escreveu que algumas estratégias que Trump usou em 2016 já foram usadas nos anos 1920, antes da formação da União Soviética. Quando é que começou a era da pós-verdade?
A mentira existe desde os primórdios do discurso humano. As teorias da conspiração existem desde Nero, a primeira teoria da conspiração documentada era sobre o incêndio de Roma. Informação incorrecta (misinformation) é um engano, mas a desinformação (disinformation) é uma mentira partilhada por alguém que sabe que é mentira.

Eu marco como início da era da pós-verdade a eleição de Trump. De alguma forma, ele não é a causa, é o resultado. O que aconteceu foi: antes, os propagandistas precisavam de descobrir como veicular a sua mensagem. Agora não há esse problema. O Facebook e o Twitter têm sido o amigo do propagandista. Foi a amplificação viral de informação falsa que nos levou à era da pós-verdade.

Foto
RICK BERN

Como se diz a alguém que não acredita na verdade como um todo que estão errados? Como se fala com alguém que acredita em algo que não é, objectivamente, verdadeiro?
Escrevi um livro sobre isto chamado Como Falar com Um Negacionista. As visões deles [dos negacionistas] não se baseiam em evidência. E, quando lhes apresentas provas de que estão errados, eles respondem: “Não, isso é falso. Não confio em ti. Isso é uma teoria da conspiração. Isso não está certo. Estás com o governo.”

Portanto, como convencê-los? É quase impossível. O único método que parece funcionar é reconhecer que as pessoas acreditam nessas coisas por causa da sua identidade, da sua comunidade. E tem de se percorrer um caminho de construção de confiança e amizade antes de mudar as suas crenças.

A solução, acho eu, é lutar contra a amplificação da desinformação, impedir que mais pessoas caiam nessa espiral. É como uma doença: se os germes saem, as pessoas ficam doentes. Então, tenta-se parar o espalhar da doença. Se alguém não acredita nos seus pontos de vista com base em provas, como é que muda a sua forma de pensar dando-lhes melhores provas? Não dá. Quando a crença está enraizada, os factos não importam. Os negacionistas não têm défice de factos, têm défice de confiança. Portanto, a questão é como se constrói confiança suficiente para que eles te ouçam.

Foto
Gravura representando o incêndio em Roma de 64 d.C. provocado pelo imperador Nero, que acusou os cristãos de o terem ateado: é a primeira teoria da conspiração documentada Carl Simon/Getty Images

E se alguém já “desceu a espiral”, é provável que não vamos conseguir tirá-los de lá?
Pode-se tentar. Conheço muitas histórias de pessoas que eram completos negacionistas sobre as alterações climáticas, sobre vacinas, mas mudaram de ideias. A história interessante a contar, no entanto, é que eles não mudaram de ideias porque alguém lhes enfiou factos pela garganta abaixo. Eles mudaram de opinião porque alguém que eles amavam e em quem confiavam perdeu tempo a mostrar carinho, respeito e amor.

Então, a melhor maneira de quebrar a barreira é construir confiança para que aceitem os factos?
Exactamente. Há um estudo da Nature Human Behavior, de 2019, que mostra que não se deve desistir. Há trabalho empírico que mostra que se pode levar até um completo negacionista a mudar de ideias. Partilhar factos é uma maneira. Outra, que o estudo mostrou ser igualmente eficaz, é perguntar sobre o porquê de acreditarem em certas coisas.

Todos [os tipos de negacionista] funcionam exactamente da mesma forma. Eles escolhem evidência incompleta, acreditam em teorias de conspiração, usam argumentação ilógica, acreditam em falsos especialistas, denigrem os verdadeiros, e acreditam que a ciência tem de ser perfeita para ser credível. Sabendo isso, pode-se falar com um negacionista de ciência e talvez convencê-lo, mesmo sem ser especialista.

E não quero que cheguem à conclusão de que estou a reduzir a importância do vosso trabalho enquanto fact-checkers, porque é muito importante. Mesmo que não convençam os mais radicais, é importante impedir que mais pessoas caiam na espiral. Eu entrevistei pessoas dos serviços secretos do Exército e eles disseram que precisamos de usar algumas das técnicas que o outro lado está a usar: dizer a verdade, repetir a verdade, chegar primeiro com a verdade.

E essas coisas estão a ser feitas? Ou há muito trabalho a fazer?
Algum do trabalho que tem de ser feito não está só a não ser feito — está a ter resistências. A desinformação vem de pessoas que a criam para pessoas que a amplificam para pessoas que acreditam nela. Falando com quem acredita, é difícil fazer com que mudem de ideias. Falando com quem a cria, porque é que eles haviam de mudar?

Fazer com que as pessoas não a amplifiquem: como fazemos isso? Porque muita da desinformação é amplificada pelas redes sociais e as empresas de redes sociais não mostraram qualquer interesse em combater isto. No Outono de 2020 sim, mas as coisas pioraram desde então. Tanto o Facebook como o Twitter despediram enormes equipas de pessoas que eram fact-checkers ou responsáveis por moderação de conteúdo. Agora já não o fazem na dimensão em que o faziam.

O Centro de Combate ao Ódio Digital descobriu em 2019 que 65% da propaganda antivacinas no Twitter era responsabilidade de 12 pessoas. Uma delas era Robert F. Kennedy Jr.. Oito delas ainda estão no X. É nesse mundo que vivemos. O Governo não nos vai salvar; as empresas de redes sociais não nos vão salvar.

O jornalismo pode salvar-nos. Há jornalismo tendencioso, como a Fox News, e nós sabemos que eles mentem, porque já foi atestado em tribunal. Mas até os media tradicionais, os media que tentam fazer as coisas bem, podem amplificar desinformação inconscientemente. Uma das formas é ao não usarem a palavra “desinformação”. Usam “informação incorrecta”, um eufemismo. “Se eu digo que é mentira, tenho de dizer quem é o mentiroso.”

Disse há pouco que pessoas que divulgam desinformação acusam fact-checkers e cientistas de “estarem com o governo”. Mas o que acontece quando estas pessoas chegam lá [ao governo]?
Fascismo.

Portanto, usam a desinformação para chegar ao poder e ficar lá.
Há uma linha recta: a desinformação cria negação. Esta é usada como uma ferramenta pelos futuros autoritários e autocratas para construir um exército de pessoas que descredibiliza quem diz a verdade. E usam isso para alcançar o poder e manter-se lá.

Foto
O candidato às presidenciais dos EUA Robert F. Kennedy (à direita) durante um entrevista à Fox News, em Abril: o advogado e activista é uma das 12 pessoas que mais tem espalhado propaganda antivacinas na rede X Roy Rochlin/Getty Images

Como vê os próximos anos em termos de desinformação? Está optimista de que o mundo vai arranjar forma de enfrentar o problema da forma correcta?
O longo arco da História mostrou-nos que a verdade é valiosa. Acho que no futuro, a longo prazo, vamos ultrapassar isto. A Idade das Trevas deu lugar ao Renascimento. Acho que chegaremos lá, se sobrevivermos como espécie.

A maioria das minhas preocupações é sobre o curto prazo, os próximos 20 ou 30 anos. Às vezes, a história humana mostra-nos que temos de ultrapassar períodos horríveis de negação, destruição, ódio e violência, para chegarmos a um período em que estamos prontos para ouvir a verdade. Se olharmos para a história europeia recente, nos últimos cem anos, percebe-se que é fácil para uma população cair no fascismo e é muito difícil sair dele.

Se os Estados Unidos conseguirem impedir que Donald Trump reconquiste a presidência, isso vai ser uma coisa imensamente boa para o mundo inteiro. Se ele conseguir a presidência, não sei. Soa apocalíptico, mas eventos pequenos na história já tiveram grandes consequências.

Sinto-me encorajado por alguma da cobertura que tenho visto recentemente. Algumas emissoras estão a começar a usar a palavra “desinformação”. Tenho muita admiração por uma equipa de investigação do New York Times, que falou sobre como Trump e os seus aliados estão a ganhar a guerra da informação. Eles estão a mostrar: “Estas são as pessoas por trás das mentiras.” É assim que se combate, é o que os jornalistas têm de fazer mais.

Sempre me pareceu que há mais pessoas a acreditar na verdade do que os que não acreditam. Mas é o cepticismo que me incomoda.

Mas pensa que há pessoas que conhecem a verdade, mas, como são cépticos, optam por ignorá-la?
Não é que as pessoas costumassem acreditar na verdade e agora não. É que se tornaram cépticas e estão a identificar as pessoas erradas. Eu às vezes digo a teóricos da conspiração: “És muito inteligente ao seres céptico e te preocupares com a possibilidade de seres enganado. Só que estás a ser enganado por pessoas diferentes das que pensas.” E às vezes funciona, às vezes respondem: “A sério? Quem?”

Porque é a pior coisa que podes dizer a um teórico da conspiração. “És um tonto. És ingénuo.” “Não não sou. Eu sou muito céptico, não acredito em nada.” “Acreditas sim.

Os cépticos são as pessoas que dizem: “Eu já nem vejo notícias. Eles são todos mentirosos. Nem me dou ao trabalho de verificar com fact-checkers, porque eles podem ser todos tendenciosos. Porque é que é importante votar? Eles são todos iguais.” Essas pessoas são o perigo.

Sugerir correcção
Ler 7 comentários